Existem algumas particularidades sobre essa impressionante obra do espanhol Salvador Dalí que dão razão à sua esposa, Gala, que disse ao vê-la pela primeira vez, logo após chegar do cinema: “Quem vê-la, jamais a esquecerá”. E é difícil mesmo esquecer A Persistência da Memória, uma pintura sobre tela em que relógios se derretem aparentemente por nada, pintada em 1931.
Transformada com o tempo numa das mais importantes obras de Dalí, ela tem em seu tamanho uma das primeiras particularidades a destacá-la: mede apenas 24 cm de altura por 33 cm de comprimento. E a segunda é igualmente fantástica: foi pintada em apenas 2h, enquanto sua esposa Gala foi ao cinema com amigos.
Uma indisposição propiciou a tela
Trata-se de obra do mais puro surrealismo, escola artística que emergiu da literatura com a disposição de incentivar a total liberdade de criação ao artista.
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Não há limites para o artista e ele deve fugir do formalismo, pois no seu inconsciente está a maior parte e a melhor matéria prima que poderá utilizar no seu processo criativo. A realidade o limita muito.
E foi no seu inconsciente que Salvador Dalí foi buscar o que precisava para completar essa obra. Naquele final de tarde, quase noite, ele estava indisposto para ir ao cinema, na companhia de Gala e alguns amigos. Por isso, pediu para ficar.
Rabiscos numa tela já iniciada
Na solidão de seu estúdio, começou a observar um pedaço de queijo Camembert que se derretia com o calor. E olhou o relógio para verificar quanto o tempo demorava a passar sem a presença de sua musa Gala, inspiração e companhia para muitos trabalhos.
Foi quando percebeu que o tempo às vezes não passa e pode, mesmo, ser atemporal.
Pegou uma tela em que já havia pintado o fundo de Port Lligat, em Barcelona, onde vivia, e onde apareciam o mar azul e alguns penhascos.
Começou imediatamente a rabiscar e brotaram os relógios derretendo-se como a mostrar que a luz melancólica lá no fundo do quadro é um tempo que não passa, mas que, também, não tem limites.
Com Guernica, obras mais importantes
Levou duas horas para concluir o quadro. Quando Gala chegou, perguntou-lhe o que achava e obteve a resposta que ele colocou em suas memórias e que se transformou numa previsão da esposa: “Quem o ver, jamais o esquecerá”.
Hoje, junto com Guernica, que Dalí pintou em 1937, A Persistência da Memória talvez seja sua obra mais famosa e apreciada no mundo todo.
Trata-se de um quadro que questiona a temporalidade e leva o ser humano a pensar sobre tudo o que faz sobre sua vida terrena.
A simbologia das formigas e da mosca
No quadro, entre tantos seres inanimados, só aparecem formigas sobre um relógio e uma mosca, num dos relógios derretidos, como seres vivos.
Talvez, andassem rondando o queijo Camembert. E ele odiava formigas. Para os críticos, ele as colocou ali em simbologia à putrefação. Mas, referindo-se ao quê? Será que ele falava da morte?
Ou simplesmente questionava o tempo, enquanto esperava por Gala.
Todas estas implicações sobre o tempo e a própria observação subjetiva de quanto podemos ser atemporais é que têm levado os críticos a fazerem muitos estudos sobre A Persistência da Memória, que está hoje no Museu de Arte Moderna, em Nova Iorque.
Relógios questionam o próprio tempo
Tudo isso faz parte, na verdade, do surrealismo, seja na literatura ou nas artes plásticas, onde não há lógica e a racionalidade dá lugar a tudo que a imaginação criadora de um artista possa tirar do seu subconsciente. Muitos críticos, na verdade, buscam explicações até mesmo nas teorias da psicanálise de Sigmund Freud.
Em A Persistência da Memória, Salvador Dalí parecia mesmo questionar o próprio tempo e os relógios derretidos estão a mostrar que o tempo pode ser diferente para diferentes coisas e situações.
Derretidos, não marcam nada e estão fora do contexto de seu uso habitual. Os ponteiros dos relógios derretidos, por exemplo, também estão distorcidos.
Outra vez o retrato com sua fisionomia
E o interessante é que o único relógio que não está derretendo está emborcado para baixo. Mas, tem formigas sobre ele.
O que isso deveria significar? Como ele detestava formigas, para alguns críticos isso significaria sinais de deterioração, de putrefação, mais um indicativo de que o tempo não faz sentido.
Outra observação interessante sobre A Persistência da Memória é que, assim como em outros quadros seus, Salvador Dalí coloca sua própria fisionomia no quadro.
Ele está na parte esquerda da figura que está caída ao chão. Junto ao que seria o seu rosto, saem um cílio e que se constituem em outra intriga aos especialistas. O que eles significariam?
Uma tela em apenas cinco horas
A caricatura de Dalí parece que está dormindo, meio inconsciente do que está acontecendo ou do que se passa ao seu redor. Outro sinal de que o tempo, afinal, não faz tanto sentido assim e de que cada detalhe nesse quadro tem um significado em que, em muitos casos, ainda está para ser decifrado.
E o mais interessante é que obra de tamanha magnitude, em espaço tão pequeno e pintado em tão pouco tempo, tenha tanto a nos dizer.
Foi finalizado em duas horas, com os relógios derretendo-se, e Dalí já havia gasto cerca de três horas na parte que já estava pronta do quadro, onde aparecem o mar e os penhascos nas proximidades de Barcelona.
O tempo não é igual para todos
Ao todo, portanto, foram apenas cinco horas para pintar toda a tela A Persistência da Memória. Dos quatro relógios que ali aparecem, um está virado e, nos outros três, aparecem horários diferenciados – cada um marca uma hora diferente.
Para muitos, ele reafirmou aí a relatividade do tempo, ou sua atemporalidade. Não podemos e não devemos ver, todos, o tempo da mesma forma. Ele é diferente ou relativo para cada um de nós.
Truques que paralisam e enganam
Trata-se de um truque para dizer coisas importantes, próprio do surrealismo que ele retratou tão bem.
Ele mesmo dizia que suas obras são “fotografias de sonhos pintados à mão”. A mosca seria o sinal evidente de que o tempo é assim, não para, ele voa. Ou seja, no surrealismo não há realidade, mas, sim, uma terrível mistura entre o possível e o que está acima de nossa realidade.
Ele também dizia sobre suas obras: “São truques paralisantes do olhar enganado”.
Há muito o que ‘ler’ nessas pinturas, especialmente em A Persistência da Memória, mas, de forma muito especial, há muito o que apreciar e deliciar-se com tamanha imaginação desse fantástico pintor espanhol.