Paris, 1884. Um escândalo é desencadeado no mais prestigiado cenário das artes plásticas: o Salão de Paris, onde todos os anos os maiores artistas apresentam suas novas criações. Nesta ocasião, a pintura em questão é “Madame X”, o retrato de uma dama.
Aqueles que o viram afirmam que a obra é inegavelmente indecorosa. Sua franca sexualidade e imodesto exibicionismo são intoleráveis.
O que pode levar um público culto e experiente a taxar essa pintura de tal maneira? Não há infinitas recriações de passagens mitológicas com nus e situações inconfundivelmente sexuais que passara por esta mesma sala? Assim é.
Porém, nesse caso, o imperdoável é que se trata de uma mulher da sociedade, cuja identidade muitos afirmam saber, que posou para o artista em provocação aberta contra os costumes consagrados pela sociedade parisiense de fins do século XIX.
Sargent: da consagração à ignomínia
O sugestivo trabalho intitulado “Madame X”, não foi a primeira obra apresentada por John Singer Sargent no Salão de Paris. Além disso, o artista já havia sido celebrado por seu grande talento. A partir deste momento, porém, todos passaram a olhá-lo com desconfiança.
Afinal, ele havia ido longe demais, arrastando consigo a senhora Gautreau – a modelo do quadro – uma bem conhecida anfitriã da alta sociedade.
“A culpa é sua, Sargent!”
Ralph Curtis, um amigo de Sargent, deixaria para a posteridade o seu testemunho de sua grande genialidade e do alvoroço que suas obras causaram na sociedade parisiense.
Curtis estava no estúdio de seu amigo quando a mãe da “Madame X” invadiu aos berros: “minha filha está perdida, toda Paris tira sarro dela”. Ela culpava Sargent pela desonra da filha – o que não era verdade, pois o pintor e sua modelo haviam se esforçado para criar uma obra juntos.
Este belo óleo sobre tela não foi, de modo algum, fruto do acaso, mas sim um trabalho meticuloso. Representava, para ambos, o culminar de um profundo desejo. Todavia, como nos melhores romances de Henry James, o resultado foi diferente do esperado.
“É o melhor quadro que já pintei”
Fazer o retrato não foi fácil para o artista. Ao contrário de outras obras – que eram encomendadas por figurões da alta sociedade – “Madame X” foi realizada por sua própria iniciativa.
Para ele, era uma maneira de celebrar a beleza e a personalidade da modelo, a quem acompanhou até a Grã-Bretanha para fazer seus primeiros apontamentos e esboços. “É o melhor quadro que já pintei”, havia dito John Singer Sargent quando a obra estava terminada.
Pouco tempo depois, já no Salão de Paris, a pintura que celebraria a beleza de uma mulher e a engenhosidade de um artista desencadeou uma polêmica que condenou os protagonistas à fogueira social.
O pintor e a modelo
John Singer Sargent (1856-1925) viveu a maior parte de seus anos na Europa. Ele nasceu em Florença, Itália, durante uma das muitas viagens de seus pais, sendo educado entre hotéis, museus e salões frequentados pela nata da intelectualidade europeia de fins do século XIX.
Após decidir estudar artes em Paris, onde imediatamente ocupou um lugar importante como retratista. Quando adulto, viajou para os Estados Unidos, elevando sua fama e aumentando o número de clientes e encomendas. Até o fim de sua vida, Singer nunca abandonaria a cidadania estadunidense.
Quanto à Madame Gautreau (1859-1915), ela foi batizada com o nome Virginie Avegno, em New Orleans, Estados Unidos. Sua mãe a levou para viver na Europa após a Guerra de Secessão. Em pouco tempo, Virginie conquistaria um lugar de destaque na sociedade parisiense.
Ela se casou com Pierre Gautreau, um rico negociante. A partir de então, tornou-se uma anfitriã incansável, daquelas que aparecem constantemente nas colunas sociais dos jornais.
Um artigo publico no “New York Herald”, escrito quatro anos após o aparecimento do escandaloso retrato, descreve-o nos seguintes termos: “É uma estátua de Canova que ganhou vida em carne, sangue, ossos e músculos, vestida por Feliz e penteada por Emile.
Como acontecera frente a outras damas da sociedade, Sargent sentiu-se atraído pela senhora Gautreau. Nunca saberemos a natureza exata dos sentimentos e do nível de intimidade que existia entre os dois. Solteiro até a sua morte, o pintor sempre foi muito discreto em sua vida privada.
Após o seu falecimento, biógrafos e estudiosos passaram a discutir amplamente a sua sexualidade sem, contudo, chegar a uma conclusão. Nos dias atuais, nada podemos afirmar sobre o assunto. A verdade é que ele se rendeu aos encantos da doce anfitriã e, por meio de alguns conhecidos, conseguiu que Virginie posasse para a pintura.
Essa tarefa, porém, tampouco foi fácil. A vida de uma mulher naquela posição era realmente atribulada, de modo que o pintor levou quase um ano para concluir o seu trabalho.
Nos desenhos preliminares, bem como no primeiro retrato de Virginie, intitulado “Madame Gautreau drinking a toast”, de 1883, Sargent prefigurou a pintura que tinha em mente. Nela, convergiram não apenas seus gostos, mas também tudo o que aprendera com o Renascimento Italiano.
A pose final seria encontrada nas pinturas dos mestres maneiristas, sobretudo, nos afrescos de Salviati.
Quando o impressionante retrato foi apresentado no Salão de Paris, a recepção foi terrível. Até esse momento, Virginie achava que era uma obra-prima, de acordo com os relatos de Elaine Kilmurray e Richard Ormond. Sem embargo, ela não pôde suportar a humilhação e os maliciosos comentários de que era alvo.
De nada adiantava tentar preservar sua identidade incógnita, todos sabiam que era ela. Houve pedidos para alterar a pintura e Sargent teve a firmeza de não tocar no decote – a principal razão de tamanho escândalo. Apenas concordou em trocar uma das tiras do vestido e o restante permaneceu intacto.
A senhora Gautreau não foi a única que se sentiu mal frente a campanha contrária ao quadro. Sargent soube imediatamente que seus dias estavam contados na capital francesa. Por um breve momento, considerou a possibilidade de desistir da vida de artista, mas preferiu se mudar para Londres.
Um novo horizonte poderia servir para mudar suas mentes. E assim aconteceu. A sociedade britânica acolheu-o de braços abertos. Ele começou uma nova etapa em sua carreira de sucesso e deixou para trás, não ser amargura, um final injusto em sua amada Paris, motivada pela “escandalosa” pintura da “Madame X”.